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Minha vida é um livro aberto

Por Patrícia Croitor


Sempre busquei associar minha atuação profissional a causas que considero importantes, que provoquem alguma mudança positiva na sociedade, que me inspirem a inspirar as pessoas. Foi assim que me apaixonei por Compliance Anticorrupção e Anti-suborno, bem na época em que a Operação Lava Jato saiu das discussões jurídicas e caiu na boca do povo. Era para mim muito instigante participar da mudança de mentalidade de que tanto precisávamos e ainda precisamos como povo, especialmente em relação ao nosso pecado de estimação, o “jeitinho brasileiro”.

Não foram tempos fáceis. Mudar uma cultura tão enraizada a ponto de as pessoas honestamente não perceberem conflitos de interesses nítidos, em que a pressão por resultados cega o mais íntegro dos colaboradores, não é tarefa simples, mas felizmente sempre fui cercada de gente muito competente e engajada.

Ainda nessa minha época de elaboração de Códigos de Conduta e treinamentos sobre ética empresarial, fiz um levantamento das Leis em Privacidade e Proteção de Dados na América Latina. O Marco Civil da Internet ainda estava em consulta pública e constatei que, em termos de Privacidade, o Brasil tinha uma ou outra disposição legal sobre o tema, ao passo que nossos hermanos latino-americanos já estavam bem mais avançados e em linha com as regras adotadas em países Europeus.

Corta para 2018: antes de apagar a luz e tirar a faixa, o presidente Michel Temer promulga a tão esperada Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD e institui a criação da Agência Nacional de Proteção de Dados, a ANPD. A Lei, aplicável a todas instituições públicas e privadas que lidam com dados pessoais, contem princípios e justificativas legais para o tratamento de dados pessoais e também lista uma série de direitos do titular de dados pessoais, isto é, eu e você.

Se você ainda está comigo, querida leitora, querido leitor, deve estar pensando, nossa…que interessante…(emogi de carinha pensando) legal, mas o que eu tenho a ver com isso? Explico: quando você usa suas redes sociais, você compartilha dados, mesmo que não poste nada. Quando você informa seu CPF para normalmente não conseguir desconto na farmácia, você compartilha dados. Quando você preenche o formulário de matrícula do seu filho na escola, você compartilha muitos dados (seus dados como responsável, dados de menores — suas crianças e adolescentes — dados sensíveis — dados de saúde); quando você cadastrou sua filha ou seu filho na plataforma digital adotada pela escola para tentar não dar o ano letivo pandêmico como perdido, você compartilhou dados e, enquanto seu filho usa a tal plataforma, ele compartilha dados. Quando sua filha te pede o dedo emprestado para baixar um joguinho no seu celular, você compartilha dados, e enquanto ela joga até acabar com a bateria, ela compartilha dados.

Ah, mas tudo bem, isso faz parte da vida de hoje, não somos tecnofóbicos, não temos como escapar… Sim e não. De fato, vivendo a 4ª revolução industrial que despeja em nossas telas tecnologias cada vez mais bacanas e surpreendentes, não compartilhar dados, além de praticamente impossível, não faz muito sentido. Se tudo que pedem são seus dados para que você possa desfrutar de inúmeros recursos, que na maior parte das vezes tornam sua vida mais fácil, fique à vontade e leve meus dados.

Mas vamos fazer outro exercício. Volte lá para os exemplos banais que eu usei e imagine que todos esses aplicativos e plataformas coletem seus dados não apenas para que você possa usar os benefícios tecnológicos por eles oferecidos, mas para outros fins que não te informam claramente, como por exemplo compartilhar com terceiros dos quais você não tem o menor conhecimento e os quais você nunca autorizou que tivessem contato com informações sobre você. Terceiros estes que, por sua vez, também farão com seus dados o que bem entenderem, inclusive compartilhar com outros terceiros…

Imagine uma empresa de convênios médicos deduzindo suas enfermidades através da análise de seu consumo nas farmácias e, assim, adaptando a cobertura de planos. Imagine a escola de seus filhos compartilhando seus dados com tudo que é empresa que comercialize produtos voltados ao público infanto-juvenil, que passará a te bombardear com publicidade direcionada. Imagine os dados colhidos durante a utilização das plataformas de aulas remotas (inclusive filmagem das aulas online) sendo usados para criar um perfil de seus filhos, que, nas mãos de alguém mal intencionado, pode ser usado para fins discriminatórios. Imagine…

Embora o mundo tenha parado com a boca aberta depois de assistir “O dilema das redes”,

pouca gente que conheço efetivamente alterou seu comportamento nas redes sociais. Ouvi de uma amiga muito esclarecida “Eu não tô nem aí! Minha vida é um livro aberto! Não sou ninguém importante para que meus dados valham alguma coisa”.

Por essas e outras que há dois anos mergulho quase todos os dias nas águas ainda turvas da LGPD: essa mentalidade tem que mudar, para o bem da nossa sociedade e, principalmente, para que possamos proteger e instruir os menores, os seres humanos em desenvolvimento que nos orgulhamos de chamar de nativos digitais, mas cujo discernimento e capacidade de reconhecer o perigo ainda estão em desenvolvimento e, portanto, devem ser protegidos com absoluta prioridade e tratados em seu melhor interesse em toda e qualquer circunstância.

O objetivo da LGPD é proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e a livre formação da personalidade de cada indivíduo. Sua vida pode até ser um livro aberto, mas você, como responsável por uma criança ou adolescente, tem o dever de zelar pelo seu melhor interesse e isso passa, indiscutivelmente, pelo direito à privacidade e a proteção de seus dados.

Buscar saber junto às escolas, às clínicas médicas, ao clube esportivo, como os dados de seus filhos estão sendo tratados, se estão seguros ou se estão expostos a toda sorte de utilização indevida é seu dever. É hora de mudar aquela chavinha chamada cultura de proteção de dados. Vamos?



Patrícia Croitor, mãe de dois, advogada especializada em Propriedade Intelectual e Direito Digital, idealizadora do projeto Impressão Digital – Educação para Cidadania, voltado para as famílias, educadores e crianças e adolescentes


Créditos da Imagem: Panoptykon Foundation




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